Oito horas de
treinamento, acho que está bom por hoje. Afasto-me dos pesos improvisados com
sacos de pedra e sento-me nesta ruína, que deveria ser uma cama. Olho em volta
como se fosse meu primeiro dia aqui, quando na verdade é o 1825º. Um cubículo
de 2x2m, mal iluminado, com umidade escorrendo pelas paredes e infestado de
ratos, minhas únicas companhias, por sinal.
Hoje é um dia
especial, então acho que vou fazer a barba. Vou a um canto da cela, que chamo
carinhosamente de “Latrina”, pego uma lâmina meio cega e um caco de espelho.
Observo por um instante a imagem refletida. Nossa... que diferença! A pele que
já fora de um negro bonito, agora está desbotada; a tez que era como veludo,
com rugas profundas; a cabeça que ostentava longos dreads, raspada; a
boca que exibia sempre um sorriso fácil, convertida em uma linha dura. Eis a
transformação que a dor e a prisão provocaram em meu corpo. Pequena, ainda,
comparada à que provocaram no meu coração, na minha vida...
As memórias
começam a emergir. Luto para resistir, mas acabo por ceder. Vejo-me
transportado cinco anos no passado. Naquela época éramos apenas eu, um
estudante de vinte anos, e minha irmãzinha Maria, uma radiante garota de dez
anos. Nossos pais já haviam morrido há algum tempo, durante um surto de dengue
hemorrágica na favela. Então éramos apenas eu e a pequena Maria no mundo, um
pelo outro.
De
manhã eu cursava Ciências Sociais, à tarde trabalhava. Voltava para casa só à
noite, depois de treinar artes marciais. Certo dia cheguei em casa e Maria
estava chorando. Perguntei o que havia acontecido. Ela disse que sua diretora
havia dado um aviso, a escola em que ela estudava seria fechada em algumas
semanas, por ordem do prefeito. Teoricamente a secretaria da educação estava
sem verbas para mantê-la.
Tsc,
mentira deslavada, o município batia recorde de arrecadação todo ano, e há
décadas não acontecia nenhuma obra na cidade que justificasse a falta de
dinheiro. Não tive dúvida, na semana seguinte pedi dispensa do trabalho e
convoquei o pessoal da faculdade para uma manifestação pacífica. Foi uma
passeata que partiu da escola de Maria até a frente da prefeitura. Centenas de
pessoas participaram, nós levantávamos placas e gritávamos palavras de ordem
contra o fim da “sucatização” da educação.
Fizemos tanta pressão que o
secretário da educação apareceu. Ele parecia disposto a conversar, dar
explicações, talvez até renegociar o fechamento da escola com o prefeito. Mas
então, sem motivo aparente, as coisas ficaram ruins. A polícia surgiu de
repente, camburões fechando as ruas, tropa de choque avançando contra os
manifestantes, sem mais nem menos. Eu olhei para Maria, ela agarrava minha mão,
assustada. A gente que é da favela sabe bem o que acontece quando a polícia
aparece.
Então,
um estouro e meus olhos começaram a arder. Gás lacrimogêneo invadia o ar e
balas de borracha voavam. Eu apertei a mão de Maria e corri, meu único
pensamento era tirar ela dali. Ela gritava desesperada enquanto a multidão
corria, também em fuga, e pessoas se chocavam contra nós violentamente. Minhas
forças vacilaram por um segundo e a mão de Maria escorregou. Impedido pela
massa, não consegui voltar e nos perdemos.
Naqueles
minutos, que pareciam uma eternidade, eu conheci a verdadeira face do medo.
Quando finalmente a confusão se acalmou e as pessoas se dispersaram, voltei até
onde tinha me separado de Maria. Aproximei-me do local, havia algo no chão.
Meus olhos ainda ardiam, não via bem, mas de alguma forma meu coração já sabia
e parecia que ia explodir em angústia. Cheguei mais perto e vi aquele pequeno
corpo franzino, que tantas vezes eu abraçara, largado no chão como um farrapo.
Estava toda ensanguentada, aquela doce cabeça que eu beijava antes de dormir,
estava horrivelmente amassada. Maria fora pisoteada pela multidão e estava
morta.
Permaneci
abraçado ao corpo dela, não sei por quanto tempo. Talvez chorasse, mas certamente
gritava, sabia disso porque meus pulmões doíam como se queimassem. Exceto isso,
não lembro de muita coisa. Em algum momento os policiais vieram até mim, me
afastaram dela e me algemaram. Eles haviam me identificado como um dos líderes
da passeata e me prenderam. Alguns dias depois eu fui julgado e condenado, por
um monte de provas falsas e um juiz vendido, a cinco anos de regime fechado por
“ato subversivo da ordem pública”.
Sou trazido de
volta à realidade pelo ruído de metal enferrujado rangendo e a voz de um guarda
me chamando.
-
Oh cara, junta suas tralhas aí. – seu jeito de falar manifesta profundo
desprezo – Seu tempo aqui no nosso spa já terminou, pode ralar peito.
Muito
bem, vejamos: respirar ar puro de novo, checado! Sentir a brisa no rosto e o
calor do sol, checado! Próximo item na minha lista de liberdade: vingança!
Quando
me tornei cordão verde em capoeira e comecei a praticar krav maga, eu
tinha aquele discursinho hipócrita de autodefesa e sei lá que outras bobagens.
Mas essa autodefesa não me serviu para nada quando as coisas exigiram atitude
de mim antes. Talvez me sirvam agora, para trazer retaliação. Na cadeia
aproveitei todo meu tempo para praticar técnicas de luta e fortalecer meu corpo.
Me sinto um tanque, pronto para derrubar qualquer um.
Mas
não é qualquer um que eu quero. É um homem em especial, capitão Ernest Von
Potestatem. Há cinco anos ele era chefe de polícia, o responsável por comandar
as ações da tropa de choque. Se as coisas saíram de controle aquele dia, se as
pessoas se desesperaram e saíram em disparada, passando por cima da minha
irmãzinha, foi tudo por causa daquela ação desnecessária e truculenta da
polícia. Em última instância, por tanto, o assassino de Maria foi o
Potestatem. Por isso, saiba que eu vou
te pegar, cara, eu vou te pegar!
História: Salomão Waked.
Arte: Murilo Fogaça Manoel.








