Já deve ser
quase 01:00h. O caminhão da reciclagem para no semáforo, e eu estico o pescoço
sobre a caçamba para me localizar. Estou na rua da biblioteca municipal.
Aproveito a parada para descer. Caminho alguns quarteirões e finalmente paro em
frente ao prédio público. O estilo clássico da fachada é belo e convidativo.
Entrar
só não é mais fácil devido à minha condição um tanto debilitada. Pulo o portão
gradeado, quebro uma janela e... voilá.
Há uma luz acesa na porção principal, onde grandes estantes de madeira maciça comportam
milhares de volumes, e longas mesas, também de madeira, esperam para serem
utilizadas, por aqueles que buscam o conhecimento.
Na
outra ponta do salão, vejo uma silhueta, oculta na penumbra. Parece o contorno
de um homem, baixo e curvado.
- Tommaso
Sapientiae?! – faço uma pergunta quase retórica.
- Boa noite,
João. Está correto, sou Tommaso Sapientiae. – a figura responde, em tom solene.
Lentamente,
ele se aproxima da luz, revelando-se. É um homem idoso, muito calvo, cabelos
brancos. Veste uma camisa verde, calça azul e chinelos com meias de cano alto. Ele
segura um livro em suas mãos: O Príncipe, de Maquiavel.
Estupefato,
abro minha boca para perguntar como esse homem, que nunca vi antes, sabe meu
nome. Mas antes da minha primeira palavra, ele volta a falar.
- João, irmão
de Maria, ex-univeritário e lutador experiente. – o velho fala, em tom de
enfado. – Cinco anos na prisão por suposto
ato subversivo da ordem pública. Viu sua irmã morrer de maneira trágica e agora
busca... VINGANÇA. Tsc, um clichê.
-Como você
sabe de tudo isso?
-Ahh meu
rapaz, eu sei de muitas coisas.
-Pecunia disse
que... – procuro as palavras com dificuldade, ainda impressionado.
-Pecunia,
Politicus, Potestatem. Todos brinquedos, à minha disposição.
-A passeata,
aquele dia...
- A repressão
da polícia? A morte da sua irmã? Incidentes menores no meu objetivo de reduzir
ao máximo a disponibilidade e qualidade da educação.
-Mas por que?
– fico cada vez mais confuso.
-Ora, como por
que? – o velho se espanta - Por acaso existe algo mais incômodo, mais
insubordinado, do que um povo instruído? – ele fala como se fosse algo óbvio – Conhecimento.
Esse é o verdadeiro poder. E somos mais poderosos quando os outros são fracos,
não é mesmo?
Meu
estômago embrulha e meu rosto não consegue esconder o asco que sinto ao ouvir
essas palavras. Quer dizer que tudo foi orquestrado por esse homem, com o
objetivo de relegar as pessoas à ignorância? Isso é simplesmente desumano.
-Isso mesmo,
rapaz – o velho volta a falar, como se estivesse lendo minha mente – Meu desejo
é que todos sejam como fantoches, manipulados conforme MEUS desígnios.
Dizendo
isso, o velho estala os dedos e imediatamente algo começa a sair de traz das estantes.
Tenho dificuldade em acreditar no que vejo. São títeres de madeira, sem rosto,
quase do meu tamanho. Eles se movem por conta própria em minha direção. Na
verdade, eles correm até mim, vindo de todos os lados.
Empunho
o facão e começo a golpear. Minha destreza e a lâmina do facão são o suficiente
para decepar uns dez bonecos. Mas eles são muitos e a arma agora começou a
perder o corte. Troco para uma arma mais confiável: meu corpo. Distribuo chutes
e cotoveladas, fazendo os bonecos voarem pelo espaço.
Espera,
eles estão se levantando? Droga, eles não são humanos, simples impactos físicos
não bastam. Já sei, vamos colocar a força hidráulica dessa armadura mecânica
para funcionar. Percebo que os títeres saem de traz das estantes, então uso a força
do exoesqueleto para empurrar uma delas. Um efeito dominó, e agora dezenas de
bonecos estão presos sob os pesados objetos de madeira maciça.
Mais
bonecos aparecem, pulando sobre mim. Eles cravam seus dedos de madeira
pontiagudos em meus músculos. O peso combinado dos oponentes me faz ajoelhar.
Agarro a cabeça de um deles e, com a força do exoesqueleto, desconecto ela do
corpo. Prossigo da mesma forma com os demais, agarrando e desmembrando. Ufa, o
peso está diminuindo. Mas estou melado com meu próprio sangue, sinal de que os
ferimentos foram vários.
- Seus bonecos
acabaram, velho. Agora eu vou acabar é com você – ameaço.
-Ah é mesmo?
Você está certo disso, rapaz? – zombou o velho.
Avanço
com um soco já armado. Ele desvia sem esforço. Rabo de arraia[1],
martelo[2],
chute tornado[3],
ele desvia de todos os meus golpes! Como?
- Hahaha como
eu, um velho, pode desviar de seus golpes? – o velho adivinhou – Você é muito
previsível, rapaz. Seus movimentos são fáceis de ler. Agora é minha vez.
O
velho franze a testa, como se estivesse se concentrando. Ahh o que foi isso? Um
livro acabou de me acertar? E agora outro! Todos os livros da biblioteca estão
flutuando ao redor do velho e voando em minha direção. Por mais ridículo que
pareça, estou sendo golpeado por livros.
- Testemunhe a
telecinesia. – diz o velho, em tom de satisfação. Uma proeza da mente que
apenas homens superiores podem dominar.
Tomo
cobertura atrás de uma coluna. Os livros param de atacar. Ouço o barulho de um
objeto pesado sendo arrastado. Uma sólida mesa de estudos se arrebenta contra a
coluna, quebrando-a, e me levando junto. Estou no chão, a cabeça sangrando,
dessa vez fui atingido para valer.
O
velho se aproxima, vagarosamente. Reparo no broche preso em seu colete. É o
broche preto gravado em prata. A gravura é um cérebro. Ele me observa com um
misto de curiosidade e desprezo. Eu retribuo com um olhar cheio de raiva.
O
velho estica o braço e faz um gesto com a mão, como se segurasse um copo
invisível. Mas que sensação estranha é essa? Meu corpo estremece. De repente,
sinto-me içado para cima, meus pés já não tocam o chão. O que está acontecendo?
Eu me debato inutilmente no ar, patético e impotente como um peixe fora d’água.
Sapientiae
move o braço e, imediatamente, me sinto compelido para o lado por uma força
invisível e brutal. Choco-me violentamente contra uma parede, depois outra e
mais uma... Ele me arremessa como se eu fosse um boneco de pano, sem nem mesmo
tocar em mim. Olho em volta, desesperado, procurando algo em que me agarrar,
mas sem sucesso.
Espera
um pouco, praticamente todo o segundo andar da biblioteca é sustentado por aquela
única viga. Se eu puder alcançá-la... Antes de ser arremessado mais uma vez,
estico o braço e agarro a viga com firmeza, graças ao exoesqueleto hidráulico.
Mas a força misteriosa que meu opoente exerce sobre mim não diminui, ao
contrário, fica mais intensa a cada segundo. A pressão é tamanha que a viga
começa e envergar e meu corpo estala. Desse jeito vou ser partido em dois.
- É inútil,
João. Acabou para você. – diz o velho, confiante da sua vitória. – Você já fez
o bastante. Já honrou a memória da sua irmã. Agora, pare de resistir e...
JUNTE-SE A ELA NO INFERNO!
- Seu velho
arrogante, eu não estou resistindo, estou puxando. – digo isso enquanto levo o
exoesqueleto ao máximo do seu desempenho, dobrando ainda mais a viga. - Tem
razão Sapientiae, acabou.
Finalmente
a viga se rompe e o piso superior inteiro vem abaixo, desabando sobre nossas
cabeças com um estrondo ensurdecedor. Mas agora o barulho dá lugar a um
silêncio sepulcral. É difícil... respirar... sob os escombros. Acho que
estou... apagando...
... .... ...
Desperto.
Meus olhos abrem-se devagar. Um raio de luz matinal, amarelo e suave atravessa
o vitral, vindo repousar em meu rosto. Seu calor é como um afago. Arrastou-me para fora dos escombros e observo
em volta, procurando. Ao meu redor, a biblioteca está completamente destruída. Um
pouco à frente, identifico o corpo de Sapientiae, parcialmente soterrado. Os olhos
ainda meio abertos, mas ele não respira mais.
Tenho
a sensação de ser observado. Mas isso não me assusta, pelo contrário, é
reconfortante. Olho na direção do vitral, por onde entra o raio de luz
abençoado. E lá está ela, sorrindo. Seus braços abertos e estendidos para mim,
como um convite. Seu olhar é cheio de ternura, como se agora fosse eu a criança
que precisa de cuidados e amor. A doce Maria zela por mim, como uma santa.
Ao
longe, ouço o som das sirenes de polícia. Não vai demorar até eles me encontrarem.
Mas não importa. Nada mais importa.
Arte: Murilo Fogaça Manoel.
[1]
Golpe
traumatizante, pelo qual o lutador posiciona-se lateralmente em relação ao
oponente, agacha-se sobre a perna da frente enquanto mantém a perna de trás
estendida. Depois, o lutador, apoiando ou não as mãos no chão, aplica um chute
giratório à média altura, “varrendo” a área à sua frente (como o movimento da
cauda de uma arraia).
[2]
Golpe traumatizante pelo qual o lutador desfere
um chute circular com a canela ou peito do pé. Demonstração:
https://www.youtube.com/watch?v=ZCLVQIfaPHE
[3] O lutador salta rotacionando o corpo 360º e, ao final
do giro, desfere um chute lateral. A rotação aumenta a energia cinética do
corpo, elevando a potência do golpe. Demonstração:
https://www.youtube.com/watch?v=E4ZE9Ivs9Kc