Capítulo 5 - Poder do Conhecimento


               


Já deve ser quase 01:00h. O caminhão da reciclagem para no semáforo, e eu estico o pescoço sobre a caçamba para me localizar. Estou na rua da biblioteca municipal. Aproveito a parada para descer. Caminho alguns quarteirões e finalmente paro em frente ao prédio público. O estilo clássico da fachada é belo e convidativo.
                Entrar só não é mais fácil devido à minha condição um tanto debilitada. Pulo o portão gradeado, quebro uma janela e... voilá. Há uma luz acesa na porção principal, onde grandes estantes de madeira maciça comportam milhares de volumes, e longas mesas, também de madeira, esperam para serem utilizadas, por aqueles que buscam o conhecimento.
                Na outra ponta do salão, vejo uma silhueta, oculta na penumbra. Parece o contorno de um homem, baixo e curvado. 



- Tommaso Sapientiae?! – faço uma pergunta quase retórica.
- Boa noite, João. Está correto, sou Tommaso Sapientiae. – a figura responde, em tom solene.
                Lentamente, ele se aproxima da luz, revelando-se. É um homem idoso, muito calvo, cabelos brancos. Veste uma camisa verde, calça azul e chinelos com meias de cano alto. Ele segura um livro em suas mãos: O Príncipe, de Maquiavel.
                Estupefato, abro minha boca para perguntar como esse homem, que nunca vi antes, sabe meu nome. Mas antes da minha primeira palavra, ele volta a falar.
- João, irmão de Maria, ex-univeritário e lutador experiente. – o velho fala, em tom de enfado. –  Cinco anos na prisão por suposto ato subversivo da ordem pública. Viu sua irmã morrer de maneira trágica e agora busca... VINGANÇA. Tsc, um clichê.
-Como você sabe de tudo isso?
-Ahh meu rapaz, eu sei de muitas coisas.
-Pecunia disse que... – procuro as palavras com dificuldade, ainda impressionado.
-Pecunia, Politicus, Potestatem. Todos brinquedos, à minha disposição.
-A passeata, aquele dia...
- A repressão da polícia? A morte da sua irmã? Incidentes menores no meu objetivo de reduzir ao máximo a disponibilidade e qualidade da educação.
-Mas por que? – fico cada vez mais confuso.
-Ora, como por que? – o velho se espanta - Por acaso existe algo mais incômodo, mais insubordinado, do que um povo instruído? – ele fala como se fosse algo óbvio – Conhecimento. Esse é o verdadeiro poder. E somos mais poderosos quando os outros são fracos, não é mesmo?
                Meu estômago embrulha e meu rosto não consegue esconder o asco que sinto ao ouvir essas palavras. Quer dizer que tudo foi orquestrado por esse homem, com o objetivo de relegar as pessoas à ignorância? Isso é simplesmente desumano.
-Isso mesmo, rapaz – o velho volta a falar, como se estivesse lendo minha mente – Meu desejo é que todos sejam como fantoches, manipulados conforme MEUS desígnios.
                Dizendo isso, o velho estala os dedos e imediatamente algo começa a sair de traz das estantes. Tenho dificuldade em acreditar no que vejo. São títeres de madeira, sem rosto, quase do meu tamanho. Eles se movem por conta própria em minha direção. Na verdade, eles correm até mim, vindo de todos os lados.
                Empunho o facão e começo a golpear. Minha destreza e a lâmina do facão são o suficiente para decepar uns dez bonecos. Mas eles são muitos e a arma agora começou a perder o corte. Troco para uma arma mais confiável: meu corpo. Distribuo chutes e cotoveladas, fazendo os bonecos voarem pelo espaço.
                Espera, eles estão se levantando? Droga, eles não são humanos, simples impactos físicos não bastam. Já sei, vamos colocar a força hidráulica dessa armadura mecânica para funcionar. Percebo que os títeres saem de traz das estantes, então uso a força do exoesqueleto para empurrar uma delas. Um efeito dominó, e agora dezenas de bonecos estão presos sob os pesados objetos de madeira maciça.
                Mais bonecos aparecem, pulando sobre mim. Eles cravam seus dedos de madeira pontiagudos em meus músculos. O peso combinado dos oponentes me faz ajoelhar. Agarro a cabeça de um deles e, com a força do exoesqueleto, desconecto ela do corpo. Prossigo da mesma forma com os demais, agarrando e desmembrando. Ufa, o peso está diminuindo. Mas estou melado com meu próprio sangue, sinal de que os ferimentos foram vários.
- Seus bonecos acabaram, velho. Agora eu vou acabar é com você – ameaço.
-Ah é mesmo? Você está certo disso, rapaz? – zombou o velho.
                Avanço com um soco já armado. Ele desvia sem esforço. Rabo de arraia[1], martelo[2], chute tornado[3], ele desvia de todos os meus golpes! Como?
- Hahaha como eu, um velho, pode desviar de seus golpes? – o velho adivinhou – Você é muito previsível, rapaz. Seus movimentos são fáceis de ler. Agora é minha vez.
                O velho franze a testa, como se estivesse se concentrando. Ahh o que foi isso? Um livro acabou de me acertar? E agora outro! Todos os livros da biblioteca estão flutuando ao redor do velho e voando em minha direção. Por mais ridículo que pareça, estou sendo golpeado por livros.


- Testemunhe a telecinesia. – diz o velho, em tom de satisfação. Uma proeza da mente que apenas homens superiores podem dominar.
                Tomo cobertura atrás de uma coluna. Os livros param de atacar. Ouço o barulho de um objeto pesado sendo arrastado. Uma sólida mesa de estudos se arrebenta contra a coluna, quebrando-a, e me levando junto. Estou no chão, a cabeça sangrando, dessa vez fui atingido para valer.
                O velho se aproxima, vagarosamente. Reparo no broche preso em seu colete. É o broche preto gravado em prata. A gravura é um cérebro. Ele me observa com um misto de curiosidade e desprezo. Eu retribuo com um olhar cheio de raiva.


                O velho estica o braço e faz um gesto com a mão, como se segurasse um copo invisível. Mas que sensação estranha é essa? Meu corpo estremece. De repente, sinto-me içado para cima, meus pés já não tocam o chão. O que está acontecendo? Eu me debato inutilmente no ar, patético e impotente como um peixe fora d’água.
                Sapientiae move o braço e, imediatamente, me sinto compelido para o lado por uma força invisível e brutal. Choco-me violentamente contra uma parede, depois outra e mais uma... Ele me arremessa como se eu fosse um boneco de pano, sem nem mesmo tocar em mim. Olho em volta, desesperado, procurando algo em que me agarrar, mas sem sucesso.
                Espera um pouco, praticamente todo o segundo andar da biblioteca é sustentado por aquela única viga. Se eu puder alcançá-la... Antes de ser arremessado mais uma vez, estico o braço e agarro a viga com firmeza, graças ao exoesqueleto hidráulico. Mas a força misteriosa que meu opoente exerce sobre mim não diminui, ao contrário, fica mais intensa a cada segundo. A pressão é tamanha que a viga começa e envergar e meu corpo estala. Desse jeito vou ser partido em dois.



- É inútil, João. Acabou para você. – diz o velho, confiante da sua vitória. – Você já fez o bastante. Já honrou a memória da sua irmã. Agora, pare de resistir e... JUNTE-SE A ELA NO INFERNO!
- Seu velho arrogante, eu não estou resistindo, estou puxando. – digo isso enquanto levo o exoesqueleto ao máximo do seu desempenho, dobrando ainda mais a viga. - Tem razão Sapientiae, acabou.
                Finalmente a viga se rompe e o piso superior inteiro vem abaixo, desabando sobre nossas cabeças com um estrondo ensurdecedor. Mas agora o barulho dá lugar a um silêncio sepulcral. É difícil... respirar... sob os escombros. Acho que estou... apagando...
... .... ...
                Desperto. Meus olhos abrem-se devagar. Um raio de luz matinal, amarelo e suave atravessa o vitral, vindo repousar em meu rosto. Seu calor é como um afago.  Arrastou-me para fora dos escombros e observo em volta, procurando. Ao meu redor, a biblioteca está completamente destruída. Um pouco à frente, identifico o corpo de Sapientiae, parcialmente soterrado. Os olhos ainda meio abertos, mas ele não respira mais.
                Tenho a sensação de ser observado. Mas isso não me assusta, pelo contrário, é reconfortante. Olho na direção do vitral, por onde entra o raio de luz abençoado. E lá está ela, sorrindo. Seus braços abertos e estendidos para mim, como um convite. Seu olhar é cheio de ternura, como se agora fosse eu a criança que precisa de cuidados e amor. A doce Maria zela por mim, como uma santa.
                Ao longe, ouço o som das sirenes de polícia. Não vai demorar até eles me encontrarem. Mas não importa. Nada mais importa.


 História: Salomão Waked.

Arte: Murilo Fogaça Manoel.



[1] Golpe traumatizante, pelo qual o lutador posiciona-se lateralmente em relação ao oponente, agacha-se sobre a perna da frente enquanto mantém a perna de trás estendida. Depois, o lutador, apoiando ou não as mãos no chão, aplica um chute giratório à média altura, “varrendo” a área à sua frente (como o movimento da cauda de uma arraia).
[2] Golpe traumatizante pelo qual o lutador desfere um chute circular com a canela ou peito do pé. Demonstração: https://www.youtube.com/watch?v=ZCLVQIfaPHE
[3] O lutador salta rotacionando o corpo 360º e, ao final do giro, desfere um chute lateral. A rotação aumenta a energia cinética do corpo, elevando a potência do golpe. Demonstração: https://www.youtube.com/watch?v=E4ZE9Ivs9Kc