Enquanto
percorro as ruas, envolto pela escuridão fria da noite, minha cabeça funciona
acelerada. Quer dizer que o Potestatem estava cumprindo ordens? Não que isso o
inocente, mas é um fato que introduz um novo responsável pela morte da Maria, o
prefeito Amadeu Politicus. Ele queria tanto calar as vozes que o criticavam,
que usou sua influência sobre a polícia para mandar descer a pancada em todo
mundo, sem pensar no que poderia acontecer com as pessoas. Esse cara vai sofrer
as consequências.
O
relógio bate 23:00h quando eu chego na praça em frente à prefeitura. O lugar
onde tudo aconteceu... é tão doloroso estar de volta aqui! Faço muito esforço
para não olhar na direção de onde encontrei o corpo de Maria, cinco anos atrás.
Observo
o prédio, a sala do prefeito no segundo andar é a única com as luzes ainda
acessas, e seu carro importado está estacionado na porta. A praça é mal iluminada,
mas vejo os guarda-costas do prefeito. Na verdade, estão mais para capangas,
esses brutamontes, carrancudos, ridiculamente metidos em ternos rotos e
amassados. Avanço, e um deles vem averiguar.
-
Perdeu o que aqui, rapaz?
-Eu?
Não perdi nada. Só queria dar uma palavrinha com o senhor prefeito.
-O
senhor prefeito está de saída. Até porque, ele não teria nada a tratar com um
zé-ninguém como...
Desfiro
uma cabeçada que interrompe a agradável conserva, bem como o arrastão[1]
e o soco na garganta, que o deixa procurando o ar. O colega dele percebeu e
está vindo, armado com uma barra de ferro. Desvio com um aú[2],
depois uma esquiva lateral e um macaco[3].
O grandalhão está muito bravo por não acertar nenhuma vez. Eu o abençoo[4]
com o pé direito e ele cai de costas. Que tal eu ficar com essa barra de ferro?
Pressiono o objeto contra seu pescoço, ele se debate por alguns segundos e
depois... se acalma, por assim dizer.
Cruzo
a praça deserta até a prefeitura. Fácil demais. Entro pela grande porta de
madeira da prefeitura e ganho o amplo saguão de entrada. A porta atrás de mim
se fecha com um estrondo e eu logo percebo que caí em uma armadilha. Cinco ou
seis capangas me cercam. Eles portam pedaços de pau, correntes, soco-inglês,
enfim, todo tipo de brinquedinho amigável.
Gingo[5].
Eles não entendem nada e riem de mim.
-Qual
é? Percebeu a merda que fez e quer se safar dando uma de maluco? HAHAHA Tenta
outra – diz um dos capangas.
Continuo
gingando, e começo a florear[6]:
um pião de mão[7],
agora um parafuso[8] e
um salto mortal. Os capangas estão paralisados, suas caras expressam uma
mistura de admiração e receio. Eu me divirto, além de conseguir uma brecha na
guarda dos inimigos. Agora, chega de brincadeira, transformo um folha seca[9]
em um golpe direto. Depois aplico uma sequência de martelos[10],
bênçãos[11],
cotoveladas e joelhadas, que terminam por deixar todos os grandalhões no chão.
Saco
o revólver da cintura. Entrego presentes para dois dos capangas, bala no ombro
e bala na perna. Que pena, acabou a munição. Tudo bem, eles entenderam o recado
e estão fugindo. Acho que agora o caminho está livre agora. Subo um longo e
belo lance de escadas em mármore branco que leva ao segundo andar.
Bem,
aquilo sobre “caminho livre” ... logo percebo meu equívoco. Em frente à porta
da sala do prefeito está parado o que parece ser o líder dos capangas, um
gigante de dois metros, portando um facão de peixaria.
Ele golpeia,
eu esquivo; ele estoca, eu pulo para trás; felizmente ele não é muito rápido,
mas essa dança não pode continuar. Se a lâmina desse facão me acertar, já era. Quando
ele estoca de novo eu me jogo no chão e acerto um quebra-joelho[12].
O golpe faz jus ao nome e o cara tomba
urrando de dor. Ele ainda agita o facão, tentando me acertar. Vou por trás
dele, no ponto cego, e chuto sua cabeça até ele apagar. Gostei do facão, vou
ficar com ele.
Agora, de volta ao Politicus. Meto o pé na
porta e entro no gabinete, o qual é ricamente ornado, diga-se de passagem. Olho
em volta, vazio. Ouço um barulho baixo, um choramingo, vindo de dentro de um
armário. Abro a porta desse armário e me deparo com o prefeito, encolhido num
canto e tremendo. Pego-o pelo colarinho da camisa e jogo-o em sua poltrona.
-Boa noite,
senhor prefeito – começo, em tom irônico.
-B-b-boa
noite, quem é você? O que você quer de mim?
-O
senhor e o tenente-coronel Potestatem se conhecem?
-E-e-eu
conheço ele, sim. Trabalhamos juntos.
-
E em que termos funciona essa relação de trabalho entre vocês?
-
Ora, eu administro a cidade e ele a protege, é só isso.
-Sei.
E, por acaso, aceitar suborno de traficante é proteger a cidade? Por acaso,
fazer vista grossa para policial corrupto, em troca de favores, é administrar a
cidade?
O sujeito está
branco, e tremendo ainda mais. É uma figura vergonhosa esse Politicus.
-
Sabe prefeito, espero que tenha curtido bem sua reeleição, porque hoje o senhor
vai morrer – disse, mostrando o facão.
-
AHHRRG – o aterrorizado prefeito gemeu alto.
-
Mas antes, eu quero que você saiba o porquê. Há cinco anos houve uma
manifestação ali naquela praça, em favor da educação. E o próprio Potestatem me
disse que foi você quem deu a ordem para que a tropa de choque fosse para cima
da gente. Minha irmã de dez anos morreu naquele dia, por causa da sua ordem
extraoficial.
-E-e-eu
não queria, eu não queria fazer nada daquilo. Eu juro. Foi ele quem me obrigou.
-
Ahh lá vamos nós de novo... Ele quem?
-
O banqueiro, senhor Pedro Pecunia.
-E
você obedeceu por que...?
-Ora,
como por que? É o acordo que ele sempre fez com todos os prefeitos da história
desta cidade: ele banca nossas candidaturas via caixa dois e nós pagamos com...
você sabe, favores.
-Humm
bom saber! Obrigado pela informação, senhor prefeito, mas já está na minha
hora.
Despeço-me
do pobre covarde enquanto cravo o facão em seu coração, até o cabo, e retiro
devagar, enquanto observo seus olhos se revolverem. Antes de largar o corpo,
porém, percebo algo familiar. O que é isso? É um broche negro com um desenho
prateado, como o do Potestatem. Mas ao invés de um punho cerrado, esse contém o
desenho de uma coluna grega. Guardo o objeto no bolso, junto ao outro, e deixo o
prédio pela porta da frente.
Arte: Murilo Fogaça Manoel.
[1]
Golpe “desequilibrante” pelo qual o lutador projeta-se para frente e para
baixo, agarra as pernas do oponente abaixo dos joelhos e empurra seu tronco com
a cabeça, fazendo o opoente cair para trás.
Demonstração: https://www.youtube.com/watch?v=LOwJ6SgkiqE
[3]
Acrobacia pela qual, iniciando o movimento agachado, o lutador apoia uma mão no
chão, próxima ao corpo, e, com um impulso, salta para trás executando um giro
completo. Demonstração: https://www.youtube.com/watch?v=am0J_26wUiU
[5]
Movimento básico da capoeira, pelo qual o capoeirista executa um balanço
repetitivo e rítmico. Na sua performance eleva-se um braço ao rosto e
estende-se a perna do mesmo lado para trás, depois alterna-se o lado. A partir
dessa posição-base, o capoeirista pode realizar diversos tipos de movimentos
(golpes, esquivas e floreios). Demonstração: https://www.youtube.com/watch?v=HbUxXJKitS4
[6] Movimentos
acrobáticos ostensivos que caracterizam a estética tradicional da copeira, tornando-a,
ao mesmo tempo, uma luta e uma dança.
[7] Acrobacia
que constitui espécie de floreio.
[9] Acrobacia
que constitui espécie de floreio.
[10] Golpe
traumatizante pelo qual o lutador desfere um chute circular com a canela ou
peito do pé. Demonstração: https://www.youtube.com/watch?v=ZCLVQIfaPHE
[11]
Vide nota 4.
[12] Golpe
pelo qual o lutador, em posição horizontal, utiliza um dos pés para puxar o pé
do opoente, enquanto com outro, empurra o joelho do oponente da direção
contrária. O movimento gera um efeito de alavanca, podendo provocar a fratura
dos ossos da perna.