Capítulo 3 - Poder Político




Enquanto percorro as ruas, envolto pela escuridão fria da noite, minha cabeça funciona acelerada. Quer dizer que o Potestatem estava cumprindo ordens? Não que isso o inocente, mas é um fato que introduz um novo responsável pela morte da Maria, o prefeito Amadeu Politicus. Ele queria tanto calar as vozes que o criticavam, que usou sua influência sobre a polícia para mandar descer a pancada em todo mundo, sem pensar no que poderia acontecer com as pessoas. Esse cara vai sofrer as consequências.
                O relógio bate 23:00h quando eu chego na praça em frente à prefeitura. O lugar onde tudo aconteceu... é tão doloroso estar de volta aqui! Faço muito esforço para não olhar na direção de onde encontrei o corpo de Maria, cinco anos atrás.
                Observo o prédio, a sala do prefeito no segundo andar é a única com as luzes ainda acessas, e seu carro importado está estacionado na porta. A praça é mal iluminada, mas vejo os guarda-costas do prefeito. Na verdade, estão mais para capangas, esses brutamontes, carrancudos, ridiculamente metidos em ternos rotos e amassados. Avanço, e um deles vem averiguar.
                - Perdeu o que aqui, rapaz?
                -Eu? Não perdi nada. Só queria dar uma palavrinha com o senhor prefeito.
                -O senhor prefeito está de saída. Até porque, ele não teria nada a tratar com um zé-ninguém como...
                Desfiro uma cabeçada que interrompe a agradável conserva, bem como o arrastão[1] e o soco na garganta, que o deixa procurando o ar. O colega dele percebeu e está vindo, armado com uma barra de ferro. Desvio com um aú[2], depois uma esquiva lateral e um macaco[3]. O grandalhão está muito bravo por não acertar nenhuma vez. Eu o abençoo[4] com o pé direito e ele cai de costas. Que tal eu ficar com essa barra de ferro? Pressiono o objeto contra seu pescoço, ele se debate por alguns segundos e depois... se acalma, por assim dizer.
                Cruzo a praça deserta até a prefeitura. Fácil demais. Entro pela grande porta de madeira da prefeitura e ganho o amplo saguão de entrada. A porta atrás de mim se fecha com um estrondo e eu logo percebo que caí em uma armadilha. Cinco ou seis capangas me cercam. Eles portam pedaços de pau, correntes, soco-inglês, enfim, todo tipo de brinquedinho amigável.


Gingo[5]. Eles não entendem nada e riem de mim.
                -Qual é? Percebeu a merda que fez e quer se safar dando uma de maluco? HAHAHA Tenta outra – diz um dos capangas.
                Continuo gingando, e começo a florear[6]: um pião de mão[7], agora um parafuso[8] e um salto mortal. Os capangas estão paralisados, suas caras expressam uma mistura de admiração e receio. Eu me divirto, além de conseguir uma brecha na guarda dos inimigos. Agora, chega de brincadeira, transformo um folha seca[9] em um golpe direto. Depois aplico uma sequência de martelos[10], bênçãos[11], cotoveladas e joelhadas, que terminam por deixar todos os grandalhões no chão.
                Saco o revólver da cintura. Entrego presentes para dois dos capangas, bala no ombro e bala na perna. Que pena, acabou a munição. Tudo bem, eles entenderam o recado e estão fugindo. Acho que agora o caminho está livre agora. Subo um longo e belo lance de escadas em mármore branco que leva ao segundo andar.
                Bem, aquilo sobre “caminho livre” ... logo percebo meu equívoco. Em frente à porta da sala do prefeito está parado o que parece ser o líder dos capangas, um gigante de dois metros, portando um facão de peixaria. 

              
Ele golpeia, eu esquivo; ele estoca, eu pulo para trás; felizmente ele não é muito rápido, mas essa dança não pode continuar. Se a lâmina desse facão me acertar, já era. Quando ele estoca de novo eu me jogo no chão e acerto um quebra-joelho[12].  O golpe faz jus ao nome e o cara tomba urrando de dor. Ele ainda agita o facão, tentando me acertar. Vou por trás dele, no ponto cego, e chuto sua cabeça até ele apagar. Gostei do facão, vou ficar com ele.
                 Agora, de volta ao Politicus. Meto o pé na porta e entro no gabinete, o qual é ricamente ornado, diga-se de passagem. Olho em volta, vazio. Ouço um barulho baixo, um choramingo, vindo de dentro de um armário. Abro a porta desse armário e me deparo com o prefeito, encolhido num canto e tremendo. Pego-o pelo colarinho da camisa e jogo-o em sua poltrona. 

              
-Boa noite, senhor prefeito – começo, em tom irônico.
                -B-b-boa noite, quem é você? O que você quer de mim?
                -O senhor e o tenente-coronel Potestatem se conhecem?
                -E-e-eu conheço ele, sim. Trabalhamos juntos.
                - E em que termos funciona essa relação de trabalho entre vocês?
                - Ora, eu administro a cidade e ele a protege, é só isso.
                -Sei. E, por acaso, aceitar suborno de traficante é proteger a cidade? Por acaso, fazer vista grossa para policial corrupto, em troca de favores, é administrar a cidade?
O sujeito está branco, e tremendo ainda mais. É uma figura vergonhosa esse Politicus.
                - Sabe prefeito, espero que tenha curtido bem sua reeleição, porque hoje o senhor vai morrer – disse, mostrando o facão.
                - AHHRRG – o aterrorizado prefeito gemeu alto.
                - Mas antes, eu quero que você saiba o porquê. Há cinco anos houve uma manifestação ali naquela praça, em favor da educação. E o próprio Potestatem me disse que foi você quem deu a ordem para que a tropa de choque fosse para cima da gente. Minha irmã de dez anos morreu naquele dia, por causa da sua ordem extraoficial.
                -E-e-eu não queria, eu não queria fazer nada daquilo. Eu juro. Foi ele quem me obrigou.
                - Ahh lá vamos nós de novo... Ele quem?
                - O banqueiro, senhor Pedro Pecunia.
                -E você obedeceu por que...?
                -Ora, como por que? É o acordo que ele sempre fez com todos os prefeitos da história desta cidade: ele banca nossas candidaturas via caixa dois e nós pagamos com... você sabe, favores.
                -Humm bom saber! Obrigado pela informação, senhor prefeito, mas já está na minha hora.
                Despeço-me do pobre covarde enquanto cravo o facão em seu coração, até o cabo, e retiro devagar, enquanto observo seus olhos se revolverem. Antes de largar o corpo, porém, percebo algo familiar. O que é isso? É um broche negro com um desenho prateado, como o do Potestatem. Mas ao invés de um punho cerrado, esse contém o desenho de uma coluna grega. Guardo o objeto no bolso, junto ao outro, e deixo o prédio pela porta da frente.


 História: Salomão Waked.
Arte: Murilo Fogaça Manoel.


[1] Golpe “desequilibrante” pelo qual o lutador projeta-se para frente e para baixo, agarra as pernas do oponente abaixo dos joelhos e empurra seu tronco com a cabeça, fazendo o opoente cair para trás.  Demonstração: https://www.youtube.com/watch?v=LOwJ6SgkiqE
[3] Acrobacia pela qual, iniciando o movimento agachado, o lutador apoia uma mão no chão, próxima ao corpo, e, com um impulso, salta para trás executando um giro completo. Demonstração: https://www.youtube.com/watch?v=am0J_26wUiU
[5] Movimento básico da capoeira, pelo qual o capoeirista executa um balanço repetitivo e rítmico. Na sua performance eleva-se um braço ao rosto e estende-se a perna do mesmo lado para trás, depois alterna-se o lado. A partir dessa posição-base, o capoeirista pode realizar diversos tipos de movimentos (golpes, esquivas e floreios). Demonstração: https://www.youtube.com/watch?v=HbUxXJKitS4
[6] Movimentos acrobáticos ostensivos que caracterizam a estética tradicional da copeira, tornando-a, ao mesmo tempo, uma luta e uma dança.
[7] Acrobacia que constitui espécie de floreio.
[9] Acrobacia que constitui espécie de floreio.
[10] Golpe traumatizante pelo qual o lutador desfere um chute circular com a canela ou peito do pé. Demonstração: https://www.youtube.com/watch?v=ZCLVQIfaPHE
[11] Vide nota 4.
[12] Golpe pelo qual o lutador, em posição horizontal, utiliza um dos pés para puxar o pé do opoente, enquanto com outro, empurra o joelho do oponente da direção contrária. O movimento gera um efeito de alavanca, podendo provocar a fratura dos ossos da perna.